Marcos regulatórios: ‘Governança’ — Afinal, quem deve ser responsável pela manutenção da calçada?

Como Anda
7 min readSep 19, 2019
Confira todos os textos sobre os eixos que organizam os artigos mapeados na plataforma Como Anda.

A plataforma Como Anda disponibiliza uma ferramenta de busca de marcos regulatórios, criada com o objetivo de consolidar uma base de dados aberta com a legislação vigente referente à mobilidade a pé no Brasil. A busca pode ser feita pelos usuários a partir da seleção de filtros que, ao serem cruzados os dados, apresentam as legislações correspondentes aos critérios escolhidos. No que tange a “governança”, um dos 11 eixos que podem ser aplicados como filtro, são contemplados aspectos como: aprovação de projetos; atribuições do poder público; financiamento; fiscalização, autuação e penalidade; gestão participativa e controle social; investimento; integração entre planos; planos de priorização; responsabilidade de execução, manutenção e reforma do passeio.

Nesse último texto da série sobre marcos regulatórios, será abordada a questão: afinal, quem deve ser responsável pela manutenção da calçada?

A Norma NBR9050, ratificada pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015), estabelece a condição mínima para uma calçada ser acessível a todos. As cidades analisadas nos textos anteriores (veja aqui os outros textos da série sobre marcos regulatórios) possuem leis, decretos, manuais e/ou cartilhas que orientam o correto desenho da calçada. No entanto, apesar de tantas leis e normas, sua aplicação não é efetiva. A legislação é clara quanto aos parâmetros e ao estabelecimento de procedimentos e multas para os proprietários cujas calçadas não estejam de acordo com a lei, porém o cumprimento destas determinações não ocorre na prática em decorrência de falhas estruturais no processo de fiscalização e controle da maioria das administrações municipais.

A grande questão a ser colocada é: quem deve ser o responsável pela manutenção da calçada? O proprietário do lote lindeiro ou o Poder Público?

Segundo o Código de Trânsito Brasileiro, o sistema viário engloba não apenas o leito carroçável mas também os passeios públicos. Considerando que a municipalidade é responsável pelo leito, é coerente também que ela seja responsável pela calçada, já que são parte do mesmo sistema e possuem a mesma função, ou seja, dar suporte aos deslocamentos das pessoas.

Da mesma forma que os carros necessitam se locomover em continuidade, uma vez que seu trajeto não pode ser interrompido, os pedestres também deveriam ter sua continuidade de percurso garantida. Se as calçadas fossem vistas como o leito — a estrada — dos pedestres e, como tal, uma infraestrutura em rede, que deve ser contínua e uniforme, não faria qualquer sentido as interrupções, os obstáculos e a falta de padronização que as calçadas possuem hoje nas cidades brasileiras.

As calçadas não são vistas como parte do sistema viário e infraestrutura que dá apoio ao meio de transporte dos pedestres, mas sim como extensões do lote privado. Principalmente porque a lei as define desta maneira, já que em termos práticos e jurídicos é possível dividir a calçada em fatias que correspondem à frente dos lotes e, assim, atribuir a responsabilidade da execução e manutenção aos proprietários dos respectivos lotes. Esta atribuição não está instituída em leis federais, mas sim na legislação municipal das cidades do país. O Poder Público municipal se exime de parte de suas responsabilidades cabendo a ele apenas a fiscalização, que também não realiza.

Além da calçada ser parte do sistema viário junto com os outros elementos da mobilidade a pé, é também articuladora dos outros modos de transporte. O usuário do transporte público, bicicleta e táxi também necessita do sistema de mobilidade a pé para complementar ou articular seus meios de deslocamento. A função de intermodalidade da calçada reforça os argumentos para que a municipalidade se responsabilize pela sua manutenção.

Outro ponto a ressaltar é a diversidade de agentes que interferem na calçada: proprietários, órgãos de trânsito, de transporte, do meio ambiente, de obras, concessionárias de serviços públicos etc. É necessário um agente que coordene as ações e compatibilize os projetos. O proprietário não possui a capacidade, e muito menos a atribuição, para organizar todas essas interferências e articular as ações de todos esses agentes.

Ainda há a questão da continuidade da calçada. Como cada trecho é de um responsável diferente, é mais trabalhoso e difícil articular proprietários para garantir um padrão no percurso, tanto em relação à manutenção do pavimento do piso, à largura do passeio livre, quanto para evitar desníveis nas divisas dos trechos. Para tentar alcançar um padrão, as leis precisam cada vez ser mais restritas e minuciosas em suas especificações. Esse aspecto se agrava em situações urbanas complexas: ruas com acentuada inclinação ou curvatura, por exemplo.

O Plano de Mobilidade de São Paulo elaborado em 2015 destaca a necessidade de o poder público assumir a responsabilidade sobre as calçadas:

“[…] a elaboração do PlanMob/SP 2015 opera sob o entendimento de que a gestão do espaço público viário deve ser única e sob responsabilidade exclusiva da municipalidade. O CTB define a via como superfície onde transitam veículos, pessoas e animais, compreendendo a pista, a calçada, o acostamento e o canteiro central. Sendo, portanto, um espaço único de circulação, que apresenta separações por elementos físicos ou de sinalização para preservar a funcionalidade e a segurança dos usuários, seria recomendável que a gestão desse espaço estivesse submetida a uma só instância da administração pública municipal e obedecesse aos mesmos princípios. Mas a prática em São Paulo tem sido considerar a pista de rolamento uma questão prioritária a cargo dos órgãos de trânsito e transporte, enquanto a calçada é vista como uma infraestrutura de menor importância hierárquica, podendo ficar a cargo dos proprietários dos imóveis, como se fora uma extensão dos lotes privados. A importância reduzida das calçadas para a circulação está na base da explicação de seu mau estado geral de conservação e da dificuldade institucional de solucionar o problema” (Plano de Mobilidade de São Paulo, 2015, p.112, item 5.3).

Em São Paulo há um Projeto de Lei (PL 79/2013, aprovado em segunda votação na Câmara dos Vereadores em novembro de 2016, mas vetado pelo Prefeito em dezembro de 2016) que propõe ser “obrigação da Prefeitura Municipal executar as obras e adequações necessárias, manter e conservar os passeios públicos, inclusive com relação a faixa livre de circulação em sua largura e requisitos técnicos”. Indica que as despesas necessárias para cumprimento da lei devem correr por conta das dotações orçamentárias próprias, suplementadas se necessário. Este projeto representa uma quebra de paradigma ao alterar a forma como o passeio público é encarado no Brasil, podendo contribuir para a padronização e garantir regularidade dos espaços de caminhada, auxiliando na consolidação, enfim, de uma rede de mobilidade a pé. O PL dispõe também sobre mapeamento de acidentes em calçadas e aponta que o Ministério Público poderá pressionar pelo cumprimento da Lei e criar ‘Termos de Ajustamento de Conduta’.

Entretanto, do modo que as alterações são estabelecidas, caso aprovado, correria o risco de não ser cumprido por conta da possibilidade de não absorção dos custos de construção, recuperação e manutenção das calçadas paulistanas com o mesmos recursos — orçamentários e humanos — do município. Para evitar este risco, o Projeto de Lei poderia indicar de forma mais específica a fonte de recursos para a manutenção das calçadas, com base em estudos das formas de arrecadação do município, principalmente podendo ser as mesmas que destinam recursos ao sistema viário e de trânsito. Ademais, a elaboração do PL careceu de participação das diversas partes interessadas que o tema abarca, o que poderia ter enriquecido o PL e a discussão, com opiniões de usuários, cidadãos e especialistas.

A administração municipal de São Paulo, em 1969 (Lei 07.359/69), criou um fundo de construção e conservação, destinado ao custeio integral das obras de construção e conservação de muros e passeios no Município. A lei foi revogada dois anos depois (Lei 7.664/71).

A Lei Brasileira de Inclusão — LBI exige que nos planos de mobilidade sejam também elaborados os planos de rotas acessíveis aos passeios públicos a serem implantados ou reformados pelo poder público para garantir a acessibilidade a todas as rotas e vias existentes. Essa determinação poderia ser interpretada como uma exigência federal para que os municípios assumem a responsabilidade pelos passeios públicos.

No caso da transferência de responsabilidade pelas calçadas do agente privado para o agente público, poderia haver uma determinação federal, padronizando esta nova exigência para todos os municípios. Ou, então, há a possibilidade que esta mudança ocorra por iniciativa de algum município e acabe sendo replicada e adotada por outros ao longo do tempo. De qualquer modo, este é um debate que precisa ser colocado, de maneira ampla e de forma participativa, para que os avanços tão necessários para a melhoria nas condições das calçadas sejam alcançados. E para além da questão de responsabilização, é necessário especificar um plano estratégico de implantação, envolvendo desde a adequação e conserto de calçadas, hierarquia das vias a serem atendidas até pesquisas de contagens de fluxos de pedestres para embasar o cronograma e a hierarquia de prioridades a serem atendidas.

A série de textos sobre marcos regulatórios da mobilidade a pé foi construída a partir dos documentos levantados e analisados pelo Como Anda (2016–2018). Aprofundar esse assunto é fundamental para a pauta, além de ser imprescindível para comunicar um dos principais objetivos da nova fase do projeto (2019–2020): contribuir para o fortalecimento das organizações que atuam — ou querem atuar — com advocacy/incidência política nas Eleições Municipais de 2020. Convidamos você a explorar a ferramenta no site e acompanhar como esse assunto é abordado nos documentos específicos da sua cidade. Fique de olho sobre as novidades dessa nova fase, sua participação será fundamental.

Como Anda é o ponto de encontro de organizações que promovem a mobilidade a pé no Brasil, um projeto em desenvolvimento desde janeiro 2016 pelas organizações Cidade Ativa e Corrida Amiga através do suporte financeiro do ICS. Em sua primeira fase (2016), o projeto Como Anda contou com a consultoria em legislação de Meli Malatesta e Thaísa Froes.

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