Caminhos Cruzados: Gênero e mobilidade a pé

Como Anda
8 min readSep 10, 2018

Caminhos Cruzados é uma experiência de debate virtual com o objetivo de discutir um mesmo tema a partir de visões e abordagens distintas. Além de responderem cada uma das três perguntas elaboradas pelo Como Anda, cada convidado deve comentar a resposta do outro. Trata-se de um esforço para revelar as divergências, singularidades e, também, as semelhanças entre as perspectivas de cada um sobre a mobilidade a pé no Brasil.

Gênero e mobilidade a pé

Com Letícia Bortolon, coordenadora de pesquisas no Instituto de Políticas de Transporte & Desenvolvimento (ITDP Brasil), e Kamila Gomes, Professora da Rede Municipal de Ensino de São Paulo.

1. São grandes os desafios enfrentados pelas mulheres para que usufruam do direito e acesso à cidade. Neste sentido, quais aspectos vocês destacariam que são limitadores para que as mulheres escolham o modo a pé como meio de transporte?

Letícia Bortolon: Precisamos voltar um pouco nessa reflexão e entender que mulheres podem escolher não caminhar pela cidade. A caminhada e o transporte público são os modos mais importantes para o deslocamento das mulheres nas cidades em desenvolvimento, sobretudo para as mais pobres. Em São Paulo, por exemplo, a análise de gênero e classe da pesquisa de Origem e Destino de 2012 revelou que 74% das viagens diárias das mulheres eram feitas em transporte público ou a pé, sendo que entre as mulheres mais pobres 50% das viagens eram feitas caminhando. Já entre as mulheres mais ricas, apenas 16% se locomoviam caminhando em São Paulo. Mas a caminhada, seja para o destino final ou até o transporte público, representa um momento de medo e apreensão para as mulheres, causado principalmente pela pouca circulação de pessoas nas ruas. Na pesquisa sobre o acesso de mulheres e crianças à cidade, realizada pelo ITDP Brasil em 2017 com grupos focais de mulheres da periferia da Região Metropolitana do Recife, ficou claro que a violência urbana e de gênero são grandes limitadores da sua mobilidade.

KG: O que mais me chamou a atenção na resposta da Letícia é quando ela afirma que as mulheres podem escolher não caminhar pela cidade. Estou super de acordo com esta afirmação. Pois está alinhada diretamente nas questões de gênero. Apesar da necessidade em se locomover na cidade, esta locomoção acaba sendo restrita ao trabalho. O medo também colocado em destaque demanda um novo olhar para a organização da cidade, nos levando a pautar políticas públicas que possam colaborar na participação mais ativa das mulheres.

Kamila Gomes: Falar sobre caminhos e opções do caminhar, além do uso do transporte público em nosso cotidiano, é perceber que são diversas mulheres e uma diversidade de razões que nos levam aos nossos destinos. Com isso, meu olhar é mais pelo cotidiano que vivo, como professora na rede municipal de ensino e como participante do fórum de mulheres. No caso da periferia, as mulheres trabalhadoras tem seu tempo contado, levam filhos na escola, fazem tarefas em casa, tem outras atividades, e acabam utilizando o transporte público muitas das vezes para minimizar o tempo. Entretanto, muitas mulheres fazem grandes percursos a pé, a fim de economizar com gastos do transporte que pesam demais no orçamento nos dias de hoje.

LB: A experiência relatada pela Kamila evidencia, assim como os números da pesquisa Origem e Destino de São Paulo, a importância da caminhada e do transporte público na vida das mulheres. As escolhas que favorecem um modelo de cidade centrada no uso do automóvel reforçam um padrão de locomoção que beneficia, sobretudo, os homens e as mulheres mais ricas. É preciso que os governos se comprometam com políticas públicas que priorizem os deslocamentos nos modos ativos (a pé e por bicicleta), no transporte público e que desestimulem o uso do automóvel, optando assim por cidades que contribuam verdadeiramente para a diminuição das desigualdades de gênero, raça e renda.

2. Como raça e classe social influenciam na vulnerabilidade das mulheres nos espaços públicos? Que relação existe entre o uso (ou não) desses espaços com o meio de transporte mais utilizado por elas?

Letícia Bortolon: O Mapa da Violência 2015 — Homicídios de mulheres no Brasil, da FLACSO, revela que entre 2003 e 2013 houve uma queda de 11,9% na taxa de homicídios de mulheres brancas e um aumento de 19,5% da taxa entre mulheres negras. Por outro lado, a pesquisa da Campanha Cidade Seguras para Mulheres, realizada pela Actionaid em 2014, revelou que 86% das brasileiras entrevistadas já foram assediadas no espaço público e 44% no transporte. Na pesquisa realizada pelo ITDP Brasil, dentre as situações de insegurança e medo vivenciadas pelas mulheres, a espera pelo ônibus nas paradas é o momento e o local onde elas se sentem mais expostas e têm mais medo. As paradas estão, em geral, instaladas em lugares ermos, sem movimento de pessoas ou atividades comerciais por perto, principalmente à noite e nas periferias.A percepção negativa sobre a insegurança nos espaços públicos influenciam, e muitas vezes limitam, as escolhas das mulheres quanto aos deslocamentos que desejam realizar na cidade.

KG: O Mapa da Violência que a Letícia ressalta nos mostra em dados, como as mulheres negras estão mais vulneráveis e acabam sofrendo mais em diversos aspectos. Um ponto importante é como isso se aplica na vida cotidiana, e principalmente na rua. Caminhar e utilizar o transporte nesta situação como ela aponta gera uma percepção negativa sobre insegurança. Eu acredito que para além de influenciar no deslocamento a realidade nos atinge diretamente. Precisamos nos deslocar principalmente por não ter o trabalho perto de nossas residências, e nos gera grandes distâncias na vida cotidiana familiar e cultural. A organização da cidade nos deixa fora da participação da mesma, e quando se tem o recorte de raça e classe social isso só se amplia.

Kamila Gomes: As mulheres nas áreas mais afastadas da periferia utilizam o transporte público para o trabalho ou estudo. Entretanto, na maioria das vezes as mesmas caminham bastante antes de chegar neste transporte, pois deixam crianças nas escolas, ou fazem diversas outras coisas antes de ir ao trabalho. No caso das mulheres negras no qual me enquadro, é ainda mais complicado ficar nos pontos de ônibus ou caminhar sozinhas, pois isso acaba acontecendo uma vez que somos vistas também como alguém que pode gerar perigo nesta sociedade racista e machista.

LB: Como a caminhada e o transporte público são centrais para toda a cadeia da vida cotidiana das mulheres, especialmente para as mais pobres e para as negras, elas estão mais vulneráveis à violência urbana e de gênero que acontecem comumente nas ruas e no transporte. As situações de medo acabam exigindo das mulheres uma série de estratégias para que possam exercer o seu direito à mobilidade, como pedir para alguém acompanhá-las no trajeto entre a casa e o transporte público, evitar pegar um ônibus muito cheio ou muito vazio, evitar caminhar sozinhas, etc. Como medida extrema, algumas mulheres acabam desistindo de realizar certas atividades, como trabalhar ou estudar, sobretudo à noite.

3. Que tipos de ações e mudanças vocês veem como necessárias para que todas as mulheres possam escolher o caminhar como meio de transporte nas cidades brasileiras?

Letícia Bortolon: Nossas cidades e regiões metropolitanas se consolidaram como ocupações espraiadas, com alta concentração de oportunidades — educação, saúde, lazer, cultura, empregos, serviços — , nas áreas centrais, com as pessoas mais pobres morando nas periferias essencialmente residenciais. Embora esse modelo de cidade gere a necessidade de grandes deslocamentos, a caminhada é uma das principais formas de locomoção das mulheres mais pobres, sobretudo pela limitação de recursos para o uso do transporte público. Para garantir uma cidade onde a caminhada seja de fato uma opção precisamos avançar no planejamento sensível ao gênero, com políticas de mobilidade e de uso e ocupação do solo coordenadas, que minimizem as necessidades de percorrer grandes distâncias. É fundamental que habitação e outras atividades urbanas estejam melhor integradas e distribuídas pela cidade, pois a diversidade e a mistura de usos — diurnos e noturnos — , são essenciais para a promoção da caminhada. Essas são medidas estruturais, de longo prazo, mas que podem garantir maior autonomia às mulheres nos seus deslocamentos. Além disso, também é necessário adotar o desenho de ruas com velocidades reduzidas, que priorizem os modos de transporte que mais atendem aos interesses de pessoas em situação de maior vulnerabilidade, entre eles as mulheres, e que não excluem ninguém: a caminhada, a bicicleta e o transporte público coletivo, alocando melhor os recursos para cidades sustentáveis e mais equitativas.

KG: Garantir o acesso da cidade para todas as pessoas é essencial. Por isso, assim como a Letícia coloca, é fundamental que a habitação dialogue com as atividades urbanas. As grandes distâncias no deslocamento acabam deixando as mulheres focadas nas tarefas cotidianas apenas. Acredito que reorganizar a cidade para que a periferia tenha acesso próximo a sua casa de espaços culturais, saúde e trabalho é fundamental. Por outro lado, que mulheres possam percorrer a cidade e conhecer tudo que ela lhe proporciona também é importante. Neste sentido, as políticas públicas devem pensar nas ruas, calçadas, iluminação, mas também no como estas mulheres se sentem na cidade. Ou seja, se estes espaços são seguros tanto na mobilidade como nas questões que geram desconforto. Acredito muito nos espaços transversais como fóruns e conselhos para a construção de novos modelos que favoreçam o caminhar das mulheres em toda a cidade, eles são as pessoas que deveriam propor as políticas públicas da da cidade.

Kamila Gomes: Percebo as mulheres nas periferias sempre caminhando, e utilizando o transporte para grandes deslocamentos para o trabalho. Entretanto, o espaço público não oportuniza percursos de fato saudáveis. Não temos calçadas nem sinalização adequada nos bairros, que possibilitem de fato o caminhar em qualquer idade, com dificuldade em mobilidade, com crianças de colo ou carrinhos, ou até mesmo crianças e idosos que necessitam das calçadas e ruas melhores para caminhar. Desta forma, muitas mulheres acabam não utilizando o caminhar para além de locomoção rápida. Por outro lado, mudar a estrutura da cidade também precisa estar ligada às mudanças estruturais da sociedade. Ou seja, o assédio presente em todas cidades também restringem o acesso de muitas mulheres nas ruas, pois a sensação de insegurança só aumenta nas vias sem construção adequadas e sem iluminação ou sinalização. Penso que mudanças nas estruturas da cidade ajudariam e muito o caminhar mais e melhor, mas ações e políticas públicas contra o assédio e violência contra mulheres também devem estar juntas nestas novas construções.

LB: A sensação de medo sentido pelas mulheres na vivência do espaço público só poderá ser minimizada com a adoção de medidas que transformem as cidades em locais mais vivos, com mistura de atividades urbanas diurnas e noturnas, presença de mais pessoas de diversas classes e raças convivendo nos mesmos espaços, mas também com ações estruturais de combate à violência de gênero, machismo, racismo e preconceito de classe.

Letícia Bortolon é coordenadora de políticas públicas no Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento — ITDP Brasil, onde coordenou os estudos sobre “O Acesso de Mulheres e Crianças à Cidade”, lançado em janeiro de 2018. Arquiteta e urbanista e especialista em direito urbanístico, é também conselheira e representante do Grupo de Trabalho em Gênero da União de Ciclistas do Brasil — UCB.

Kamila Gomes é Pedagoga e Professora da rede municipal de ensino em São Paulo, onde atua na educação infantil e no ensino fundamental. Participou da construção do Fórum Regional de Mulheres da Zona Norte e foi Conselheira Participava eleita nos mandatos em 2014–2015 e 2016–2017 pela Prefeitura Regional Vila Maria/Vila Guilherme na Zona Norte de São Paulo.

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