Caminhos Cruzados: A mobilidade a pé e o transporte público coletivo

Como Anda
8 min readApr 25, 2018

Caminhos Cruzados é uma experiência de debate virtual com o objetivo de discutir um mesmo tema a partir de visões e abordagens distintas. Além de responderem cada uma das três perguntas elaboradas pelo Como Anda, cada convidado deve comentar a resposta do outro. Trata-se de um esforço para revelar as divergências, singularidades e, também, as semelhanças entre as perspectivas de cada um sobre a mobilidade a pé no Brasil.

A mobilidade a pé e o transporte público coletivo

Com Flavio Siqueira, articulador da Purpose (Projeto Cidade dos Sonhos), e Caio César C. Ortega, idealizador do COMMU (Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana).

1. A rede de transporte público coletivo deve ser planejada em diversas escalas, desde a conexão entre os vários pontos na cidade até a estação de acesso. Como esse planejamento pode incluir pedestres e usuários do transporte público para atender às suas reais necessidades?

Flavio Siqueira: O objetivo principal das políticas públicas é implementar soluções que atendam às necessidades das pessoas por meio da identificação e reconhecimento de problemas que elas enfrentam. E não há política pública de sucesso sem que sua elaboração se utilize de mecanismos efetivos de participação. E não há participação efetiva se a gestão pública não traz estímulos e incentivos para que a população possa participar. A maioria dos deslocamentos nas cidades se dá por meio da caminhada e raramente se vê políticas de mobilidade que levem em consideração as necessidades reais de pedestres e usuários do transporte público. Ainda é preciso muita pressão e organização para cobrar melhores respostas do poder público. E a demanda por participação efetiva da sociedade na elaboração e implementação dessas políticas é o primeiro passo para a transformação.

CO: O Flavio é preciso quando aponta a sinergia entre políticas públicas de sucesso e participação popular e a necessidade de pressionar o poder público para que este forneça melhores respostas. Faltam mais audiências públicas, reuniões e oficinas. A participação popular demanda muito tempo, até porque é um exercício puramente político e exige que as partes envolvidas tenham abertura ao diálogo e consigam ceder e encontrar pontos de convergência. A participação popular é importante, justamente, por instrumentar a ruptura dos vícios associados aos mandatos (por exemplo: descontinuidade de políticas públicas e cronogramas duvidosos para inauguração de obras).

Caio César C. Ortega: O planejamento pode ser mais inclusivo para passageiros e pedestres se houver um maior número de instrumentos participativos e também, junto às equipes de profissionais e técnicos envolvidos, a ideia ou noção de que a prioridade é do pedestre sempre que possível. Atualmente há uma participação predominante do modo ônibus nas viagens (CMSP, 2007), de forma que a expansão da rede de alta capacidade, em superfície e elevado, tipologias que prezam pela rapidez e menor custo, pode ser uma maneira de responder a anseios como redução dos tempos de viagem, maior conforto, uma operação mais regular etc. Outro aspecto essencial é garantir o cumprimento dos instrumentos do Estatuto das Cidades, de forma a tentar disciplinar o uso e ocupação do solo, garantindo moradias mais acessíveis, além disso, todos os municípios da metrópole devem elaborar bons planos diretores e zoneamentos, que estimulem um desenvolvimento de uso misto ao longo dos corredores de alta capacidade existentes — há muito potencial desperdiçado ao longo da CPTM, por exemplo.

FS: Os pontos levantados pelo Caio são fundamentais para que o planejamento da rede de transporte coletivo leve em consideração as reais necessidades de seus usuários e pedestres. Na última Pesquisa sobre Mobilidade Urbana na Cidade de São Paulo (2017), realizada pela Rede Nossa São Paulo e pela Cidade dos Sonhos, um dos dados que chamam atenção é que 52% dos entrevistados consideram “melhorar a qualidade do transporte por ônibus”, porém, o nível de satisfação com aspectos e áreas dos serviços de locomoção em São Paulo piorou em todos os itens, contrariando uma tendência de melhora que vinha sendo registrada desde 2008. Os instrumentos de cumprimento dos Estatuto das Cidades são imprescindíveis, como o Caio mostrou muito bem, mas não podemos depender apenas de gestões comprometidas com tais instrumentos. A nossa pressão deve ser constante para que boas políticas saiam do papel, independente da gestão.

2. A Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei 12.587/12) determina prioridade aos modos ativos e ao transporte coletivo público. Juntos, os transportes sustentáveis (ativos e coletivos) representam cerca de 70% das viagens nas cidades brasileiras (ANTP, 2014). Mesmo assim, ainda há barreiras culturais, sociais e de “status” ao uso destes meios de transporte. Quais ações são necessárias para incentivar o uso do transporte público coletivo e o modo a pé?

Flavio Siqueira: Há décadas o culto ao carro vem sendo incentivado, principalmente pela indústria automotiva, atrelando seu uso à sensação de sucesso, status e comodidade. Porém, essa sensação artificial construída ao longo dos anos é frágil e a barreira que separa as pessoas do transporte público talvez não seja estritamente cultural, social ou de status, mas também ligado à sua eficiência. A mesma pesquisa, mencionada acima, mostra que 80% dos motoristas deixariam de utilizar o carro se tivessem “melhor alternativa de transporte” e os que não deixariam de usar o carro mesmo com uma boa alternativa de transporte alcançou 9% dos motoristas. Assim, qualidade, eficiência e segurança são os elementos que trarão incentivos reais ao uso do transporte público coletivo e o modo a pé.

CO: A preocupação do COMMU é sobre o que “melhor alternativa de transporte” significa, principalmente quando começam a surgir indicativos de que serviços de “carona remunerada” pioram os congestionamentos. O transporte coletivo não deveria ser visto como mera alternativa, visto que ele já é usado pela maioria. O carro é a alternativa que capturou recursos, inclusive em detrimento da melhoria do transporte utilizado pela maioria, assim, sua infraestrutura cristaliza cruéis escolhas. O transporte coletivo precisa ser entendido como uma infraestrutura básica para as cidades, principalmente quando estas formam uma metrópole. De acordo com a Mini-OD de 2012, apenas a Sub-região Sudoeste, formada por municípios como Cotia, apresenta a utilização do automóvel pela maioria. É inegável que há a necessidade de melhorar (e muito) o transporte coletivo em geral, mas não com a ideia de fornecer uma alternativa à minoria que dirige, ainda que esta seja numerosa. Mais do que infraestrutura de transporte, o automóvel exige políticas de desincentivo, pois sua utilização, a menos que imprescindível (ambulâncias, distribuição de mercadorias, manutenção etc), é como uma espécie de vício.

Caio César C. Ortega: Concordo que há barreiras, mas nós do COMMU não costumamos nutrir preocupação por quem utiliza o automóvel. A premissa que adotamos é: o transporte coletivo deve ser pensado para pessoas, não para motoristas. A mensagem passada hoje pela infraestrutura de transporte sustentável ainda não é satisfatória, pois os sistemas de caráter estruturante (transporte de alta capacidade sobre trilhos ou até mesmo os BRTs) são limitados em cobertura e continuam reféns da priorização do automóvel, além disso, o marco regulatório atual não garante calçadas acessíveis, largas, bem pavimentadas, padronizadas etc. É essencial garantir que teremos boas calçadas e bom mobiliário urbano para quem caminha, ao passo que precisamos utilizar o espaço que hoje está sendo desperdiçado em privilégio do automóvel, para implantar sistemas de alta capacidade, como linhas de metrô pesado ou metrô leve (estas últimas também chamadas de bondes modernos ou veículos leves sobre trilhos, VLTs), garantindo assim uma maior cobertura por meios de transporte que contribuem para estruturar o tecido, proporcionando uma urbanidade de maior qualidade.

FS: De fato a infraestrutura de transporte sustentável é insatisfatório. As gestões municipais ainda estão apegadas à ideia absurda de priorização do automóvel nas políticas de mobilidade urbana, respondendo a um dos problemas mais importantes de grandes cidades brasileiras com propostas ultrapassadas e reconhecidamente ineficientes. A cidade do México, por exemplo, compreendendo que toda viagem de carro começa e termina em uma vaga de estacionamento, está implementando uma gestão de estacionamento mais restritiva, como um claro incentivo para as pessoas abandonarem seus carros. Medidas como essa, podem parecer contra-intuitivas para quem está acostumado a dar prioridade ao automóvel em suas políticas, mas são também necessárias para que a agenda pública esteja voltada para a priorização do transporte coletivo e da mobilidade ativa. No Rio de Janeiro, o espaço usado para a construção de residências e escritórios entre 2006 e 215 ocupou 57% da área construída, enquanto a área dedicada a estacionamentos e garagens ocupou 43%, aumentando o preço das unidades para habitação e agravando problemas de desigualdade e mobilidade. Todas essas áreas poderiam ser redistribuídas e os estacionamentos na via poderiam, por exemplo, ser substituídos por faixas e corredores de ônibus e infraestrutura para pedestres e ciclistas, reduzindo as emissões de gases de efeito estufa e ajudando a criar cidades mais saudáveis e sustentáveis.

3. Associado aos modos ativos, o transporte público está diretamente relacionado a hábitos saudáveis e à diminuição de gases poluentes quando comparados à mobilidade de carros particulares. Como a atuação em saúde e meio ambiente pode auxiliar a evoluir a discussão?

Flavio Siqueira: Na cidade de São Paulo, os carros ocupam 88% do espaço nas ruas e geram 73% dos gases de efeito estufa emitidos, apesar de transportar apenas 30% da população. São milhares de mortes, todos anos, por conta da poluição, sendo que boa parte dela é proveniente da queima de combustível dos automóveis. É muito preocupante, pois além de ser uma máquina mortífera em decorrência de acidentes e atropelamentos, o automóvel é o grande vilão das mortes por conta da poluição. O argumento dos impactos da poluição na saúde é potente para uma transformação no modo de pensar as cidades. Na discussão sobre a lei municipal de São Paulo que prevê a substituição dos ônibus a diesel por combustíveis limpos, o argumento da saúde foi chave para gerar engajamento e pressão na Câmara Municipal para sua aprovação, uma vez que pesquisa do Instituto Saúde e Sustentabilidade mostrou que só a fumaça dos ônibus de São Paulo mata cerca de 11 pessoas por dia.

CO: Infelizmente a população ainda não parece ter associado a ideia de morte ao uso de combustíveis fósseis, com certeza é algo que precisa ser explorado para conscientizar a população sobre a nocividade da matriz energética que predomina no meio rodoviário.

Caio César C. Ortega: A discussão pode auxiliar no sentido de estimular o uso de motorização elétrica, por exemplo. O grande problema é que o transporte coletivo, mesmo poluente, ainda corresponde a uma parcela bem menor das emissões. Quem utiliza o automóvel não está pagando pelas externalidades que causa, então a discussão precisa deixar claro o que o automóvel também pode fazer, justamente para que exista uma menor resistência quando o espaço é racionalizado para dar prioridade ao transporte coletivo. Outro ponto é que existem oportunidades de criar espaços verdes que também podem ser combinados com sistemas de alta capacidade; as oportunidades a que estou me referindo são grandes avenidas marginais, como a Marginal Tietê ou a Avenida Aricanduva. Poderíamos ter corredores verdes, com parques lineares, áreas alagáveis para controle de enchentes, ciclovias e pistas de caminhada, além de algum tipo de transporte não poluente, como uma linha de monotrilho para até aproximadamente 45 mil pessoas/hora por sentido.

FS: Fica claro que as áreas de mobilidade, saúde e meio-ambiente estão absolutamente interligadas, porém isso precisa estar refletido na agenda do poder público. Ainda não vi um debate sobre mobilidade com diferentes secretarias integradas, provavelmente essa demanda deverá vir da sociedade civil.

Flavio Siqueira é advogado, especialista em Interesses Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público e Mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do ABC.

Caio César C. Ortega é aluno do Bacharelado em Planejamento Territorial da Universidade Federal do ABC e um dos idealizadores do Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana (COMMU).

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